Escrito por: Nathalia Passarinho Do G1, em Brasília
Colegiado disse que método era base da repressão, e não apenas 'pontual'.Para Comissão da Verdade, alto comando da ditadura sabia das torturas.
A Comissão Nacional da Verdade, ao divulgar balanço de um ano de trabalho nesta terça-feira (21), afirmou que os levantamentos feitos pelo grupo apontam que a tortura no regime militar brasileiro começou em 1964, ano do início do regime, antes de haver luta armada no país. O grupo chegou à conclusão de que a prática de tortura no regime militar não era "pontual", mas sim era a "base" da repressão durante a ditadura.
“A tortura começa a ser praticada nos quartéis em 1964. A tortura não é realizada de modo pontual. Ela é a base da matriz de repressão da ditadura. Em 1964, é possível identificar centros de detenção e tortura”, afirmou a historiadora Heloisa Starling, integrante da comissão. "A tortura está na origem da ditadura militar, ela acontece antes da luta armada," completou.
Heloísa apresentou documentos que demonstram a prática constante da tortura, antes do início da luta armada no país e do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), decreto baixado em dezembro de 1968 que deu poderes extraordinários ao presidente da República e suspendeu uma série de direitos constitucionais garantidos aos cidadãos.
De acordo com a historiadora, o período de maior uso da tortura como instrumento de repressão foi o ano de 1969. "Em 1969, antes da unificação do sistema de repressão nacional, a tortura explode. Não me parece determinante o AI-5 para esse quadro. O determinante é a continuidade da tortura. Há um padrão", afirmou.
De acordo com balanço apresentado nesta terça, a comissão, criada em maio de 2012 pela presidente Dilma Rousseff com o objetivo de apurar violações aos direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, ouviu em um ano o depoimento de 268 pessoas, entre vítimas de violência e militares.
Foram ouvidos 37 colaboradores do regime militar e supostos torturadores; 24 militares que sofreram retaliações das Forças Armadas durante a ditadura; e 207 vítimas ou testemunhas.
De acordo com o professor Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador da Comissão da Verdade, em um ano de trabalho o grupo descobriu a existência de 250 “estruturas de informação” instaladas em ministérios, autarquias e outros estabelecimentos públicos.
“É impressionante a capilaridade do serviço de informação em todo o território nacional”, afirmou.
O coordenador da Comissão da Verdade afirmou que os trabalhos do grupo demonstram a prática de violência e tortura durante o regime militar. Documento oficial da Marinha mostrado por ele, afirma que era utilizada violência nos próprios militares, a ponto de “incapacitá-los para o trabalho”.
Paulo Sérgio Pinheiro frisou que a “espinha dorsal” da comissão é apurar crimes cometidos durante a ditadura militar. “A comissão reconstituirá a veracidade dos crimes, seus autores diretos e mandantes”, afirmou.
Linha de comando
A Comissão da Verdade revelou ainda que o presidente da República e ministros militares participavam da linha de comando do DOI-CODI, órgão máximo de repressão do regime militar.
De acordo com Heloísa Starling, documento do Estado Maior demonstra que a cadeia de comando do DOI-CODI alcança o presidente e os ministros da Marinha, Aeronáutica e do Exército. A informação é relevante para demonstrar que o alto comando da ditadura tinha conhecimento das torturas praticadas pelos agentes de repressão.
“Foram registradas 730 denúncias de tortura entre 1970 e 1973. E o comando do DOI-CODI alcança o então presidente da República, Ernesto Geisel, o ministro da Marinha, da Aeronáutica e do Exército”, afirmou Heloísa Starling.
Ações penais
A advogada Rosa Cardoso, que também integra a Comissão da Verdade, afirmou que o grupo irá recomendar investigação criminal dos agentes da ditadura. Para ela, crimes contra a humanidade não prescrevem e não são alcançados por anistia.
“Crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis. Se temos esse conhecimento, temos que recomendar que esses casos sejam judicializados internamente”, afirmou.
Ela destacou, contudo, que a comissão não vai encaminhar projeto ao Congresso para revogar a Lei de Anistia, que impede punição de colaboradores do regime militar e de pessoas que praticaram luta armada durante a ditadura. “Não vamos fazer um projeto de lei, porque enquanto comissão não vamos tomar parte num movimento social.”
Omissão de documentos
De acordo com a Comissão da Verdade, a Marinha omitiu, em 1993, informações sobre mortes na ditadura solicitados pelo então presidente da República, Itamar Franco. Heloísa Starling apresentou um documento oficial da Marinha, de 1982, que traz o nome de 11 pessoas mortas durante o regime.
Segundo ela, em 1993, Itamar Franco determinou que o então ministro da Justiça, Maurício Correa, requisitasse da Marinha, Exército e Aeronáutica documentos referentes a desaparecidos políticos. De acordo com Rosa Starling, a Marinha não enviou ao presidente as informações contidas no documento de 1983, que revelava a morte de 11 pessoas. Em vez disso, afirmou a Itamar Franco que os mortos estavam desaparecidos ou "foragidos".
O prontuário de mortes trazia os nomes das seguintes pessoas: Antônio Carlos Monteiro (desaparecido no Araguaia em 1972), Antônio Reis de Oliveira (desaparecido em São Paulo, em 1970), Ciro Salazar de Oliveira (desaparecido no Araguaia em 1970), Ezequias Bezerra da Rocha (desaparecido no Recife em 1972), Félix Escobar (desaparecido no Rio de Janeiro em 1971), Elenira Rezende (desaparecida no Araguaia em 1972), Ísis Dias de Oliveira (Desaparecida no Rio de Janeiro em 1972), Joel Vasconcelos dos Santos (desaparecido no Rio de Janeiro em 1971), José Gomes Teixeira (Desaparecido no Rio de Janeiro em 1971), Cléber Lemos da Silva (Desaparecido no Araguaia em 1972), Rubens Paiva (Desaparecido no Rio de Janeiro em 1971).