Corumbiara: quebrar o silêncio, vinte anos depois
O caso conhecido como massacre de Corumbiara
Publicado: 07 Agosto, 2015 - 17h53
Escrito por: João Peres/ Do Outras Palavras
Quando a corda arrebentou, o governador fez o que faria qualquer figura pública que se preze: mandou o vice ao local dos fatos e continuou em seu gabinete. Havia doze mortes confirmadas e um sem-número de informações desencontradas, mas Valdir Raupp considerou fora de cogitação deslocar-se até o Cone Sul de Rondônia, talvez por imaginar que a visita causaria danos a sua imagem. Coube a Aparício de Carvalho, psiquiatra no papel de vice, lidar com a imprensa, os políticos, os representantes de movimentos sociais e uma população em estado de choque.
O episódio era o pior da história de Rondônia. Elevada de território a estado no começo da década de 1980, aquela unidade da federação estava acostumada a conflitos agrários, mas não na proporção daquele episódio, que ficaria conhecido como “massacre de Corumbiara”. O caso era inédito também para o Brasil pós-ditadura. Na metade de julho de 1995, famílias sem-terra entraram na fazenda Santa Elina, uma entre muitas terras de alta fertilidade dadas pela União a empresários de todo tipo durante o regime autoritário. Hélio Pereira de Morais, pecuarista de São Paulo, comprara a propriedade pouco antes de Ovídio Miranda de Brito, o rei do gado.
Depois de muitas tensões e pressões, a PM realizou, entre a madrugada e a manhã de 9 de agosto, a operação de reintegração de posse. Ocorreu, primeiro, um conflito e, em seguida, uma chacina, com a morte de nove posseiros, dois policiais e um rapaz não identificado. Grupos dos ocupantes manteriam durante as décadas seguintes a visão de que muito mais pessoas perderam a vida no local, informação que nunca pôde ser nem desmentida, nem confirmada.
Sem ter visitado a Santa Elina, Raupp lançou mão de uma das respostas-padrão mais comuns da futura Escola Geraldo Alckmin de Justificativas: presumiu a inocência dos policiais e disse que entre os sem-terra havia “atiradores de elite”. Era a mesma tese defendida no relatório que recebera no mesmo dia 10 de agosto, elaborado pelo Comando Geral da Polícia Militar: duas páginas, com 70% do espaço ocupado pela descrição de tudo o que teria sido apreendido em poder dos posseiros – armas, foices, machadinhos e pás. No único parágrafo em que descreve os fatos, o texto diz que os agentes públicos foram vítimas de emboscada, numa operação que durou aproximadamente duas horas e meia.
No mesmo dia, no outro extremo do estado, Luiz Inácio Lula da Silva, mais tarde presidente, visitava o acampamento na fazenda em companhia do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, mais tarde deputado federal. Durante entrevista em Vilhena, cobrou a presença de Raupp, de quem seu partido era aliado. “O que o PT quer fazer nesse instante, antes de reavaliar a participação no governo, é exigir que o governo possa apurar toda a verdade sobre a chacina acontecida aqui em Rondônia.”
Mas Raupp já havia riscado Corumbiara de seu mapa. Desde então, evita chegar perto da cidade amaldiçoada, localizada no extremo sul do estado, próxima da fronteira fluvial com a Bolívia pelo rio Guaporé. À época, o governador preferiu ir a Brasília, onde buscou demover o ministro da Justiça, Nelson Jobim, da ideia de permitir que a Polícia Federal realizasse um inquérito paralelo sobre o caso. A promessa de que dotaria as polícias Civil e Militar de todas as condições necessárias para um bom trabalho jamais se cumpriu, e a apuração foi realizada sob uma capenguice sem tamanho.
“O grande responsável pelos atrasos verificados no desenvolvimento dos dois inquéritos que apuram o caso do massacre de Corumbiara é o exmo. governador do estado de Rondônia, que não demonstrou até o presente momento qualquer preocupação em resgatar a imagem de Rondônia perante a opinião pública nacional e a comunidade internacional”, acusou a Comissão Pastoral da Terra em documento divulgado no começo de 1996. Àquela altura, o responsável pelo inquérito policial militar, João Carlos Sinott Balbi, circulava com uma picape cheia de problemas mecânicos, arcando do próprio bolso com alguns dos custos – Raupp ainda não respondera ao pedido apresentado em setembro do ano anterior para que Balbi contasse com R$ 5 mil em mãos.
A mistura entre a preocupação com a imagem pública e a garantia efetiva do interesse público não é exclusividade do ex-governador. Há dezenas de exemplos todas as semanas de como informações de interesse do cidadão são controladas como se fossem patrimônio privado. E há uma infinidade de casos obscuros em que forças privadas entendem que o Estado deve a elas submeter-se.
O episódio de Corumbiara é farto nesta seara. O comandante da operação de reintegração de posse, o então major José Ventura Pereira, claramente relutava em dar cumprimento ao mandado. “Eu não queria ir”, mais tarde confessou à jornalista Mônica Bergamo, em reportagem para a revista Veja. Recebeu no 3º Batalhão da Polícia Militar, em Vilhena, a visita de Antenor Duarte do Valle, dias antes da operação. O proprietário de áreas vizinhas à Santa Elina exigiu que a ação de remoção dos sem-terra se desse rapidamente, sempre ciceroneado por um capitão mais tarde acusado de receber presentes de suas mãos generosas. O fazendeiro se sentia à vontade na função de líder local: fundador da seccional rondoniense da União Democrática Ruralista (UDR) e beneficiário de 43 mil hectares doados pela ditadura, acumulava uma lista farta de denúncias por escravidão, relação que seria aumentada ao longo das décadas seguintes.