Cuba e Pernambuco: "irmãs" separadas por uma cultura de justiça social
Apesar de diversas semelhanças entre a ilha e o estado, territórios se desencontram em indicadores humanos
Publicado: 05 Novembro, 2018 - 11h42
Escrito por: Emilly Dulce Brasil de Fato/SP
A distância geográfica que separa Cuba e Pernambuco é encurtada por linhas históricas, sociais, culturais e religiosas. No terreiro da mãe de santo e coquista pernambucana Maria Elizabeth Santiago de Oliveira – conhecida como Mãe Beth de Oxum – essa relação ganha vida nas ondas do rádio e dos batuques que entoam o coco de Umbigada e a cumbia.
"Em Pernambuco, se curte muita música cubana, nós temos clubes específicos, DJs de música cubana. Cuba vive em Pernambuco. É diferente de outros estados do Brasil. A gente tem a rádio comunitária Amnesia FM (89.5) [no terreiro] e colocamos um programa cubano chamado Coco de La Cumbia, onde trazemos o coco e a cumbia, porque a cumbia é muito comum da gente também", conta Mãe Beth de Oxum, que também é coordenadora do Ponto de Cultura Coco de Umbigada.
Ialorixá do Terreiro Ilê Axé Oxum Karê, em Olinda, ela conta que o sincretismo religioso cumpre papel de expressão cultural nos dois territórios, com destaque para a santeria cubana e as vertentes da umbanda em Pernambuco, por exemplo. A cultura africana também é explorada a partir do candomblé e do vodu, abordados mais pelo aspecto da espiritualidade do que propriamente como religiões.
No entanto, a similaridade religiosa entre os dois territórios esbarra em limites históricos particulares, explica Mãe Beth de Oxum. "Quando houve a Revolução [Cubana] e expulsão da dominação dos Estados Unidos, eles baniram também a dominação da Igreja e isso deu capilaridade para outra formação do povo no tocante à religiosidade. Então, como não tem a hegemonia cristã, houve um espaço para as religiões de matriz africana terem seu lugar. Aqui, já é diferente. Convivemos com a intolerância religiosa desde o tempo da invasão dos colonizadores. Nunca que a religião do povo preto e do povo indígena foi respeitada".
A coquista destaca que a cultura pernambucana também é atingida por uma perseguição histórica e vive contexto de resistência contínua. "A cultura é protagonista porque ela está na linha de frente. Muitas vezes, ela não tem o apoio governamental, do mercado e de ninguém, mas está impregnada na alma das pessoas. Nossa cultura convive ainda com a intolerância do Estado brasileiro, ainda perseguem os nossos maracatus, as sambadas de coco e de cavalo-marinho".
Os laços entre estado e ilha norteiam o documentário "Pernamcubanos - O Caribe que nos une", lançado em 2012. Sob direção de Nilton Pereira, o longa-metragem evidencia a importância de religiões de matriz africana e identidades culturais – especialmente música e dança populares – para pernambucanos e cubanos.
A imersão se dá através dos olhares de duas artistas, uma em visita ao país da outra: Mãe Bete de Oxum e Fatima Paterse, atriz e diretora de teatro cubana. Adotando o conceito de Fatima, de que a cultura extrapola os limites geográficos, o documentário transita livremente entre as cores e os sons de Recife, Olinda e Nazaré da Mata a Santiago de Cuba, Baracoa, Guantánamo, Barrancas, Sierra Maestra e Matanzas.
Passando por estilos como maracatu, conga e rap, o documentário apresenta um pouco dos ritmos de cada local, sobretudo aqueles que tiveram origem com os negros.
Violência
As semelhanças entre os dois territórios param por aí e sinalizam caminhos políticos completamente distintos. Enquanto Cuba lidera com bons índices em áreas como saúde, educação e segurança, Pernambuco vive uma onda de violência ligada a indicadores sociais, como aponta o Atlas da Violência 2018 - Políticas Públicas e Retratos dos Municípios Brasileiros.
Como sexto estado brasileiro com maiores taxas de homicídios por 100 mil habitantes, Pernambuco atingiu, em 2016, o maior índice de violência desde 2008. O número (47,3 homicídios por 100 mil habitantes) supera o de Cuba no mesmo ano (30,3), que também indicou sua maior taxa desde 2006.
Carmen Diniz, coordenadora do Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba, avalia que os altos índices não são casuais e refletem o golpe parlamentar de 2016, que depôs a presidenta eleita Dilma Rousseff (PT).
"É claro que o que traz também essa violência é a questão da desigualdade social, que é o que temos aqui no nosso país de mais grave. Não é um país pobre, é um país de pobres. É um país rico e a gente poderia distribuir muito melhor tudo isso. É o segundo país mais desigual do mundo. Depois do golpe, a tendência piorou. E se nós temos Jair Bolsonaro (PSL) que acha que vai combater a violência com mais armas, eu tenho que dizer que isso é uma temeridade, porque olho por olho acaba todo mundo cego", ressalta Carmen.
O país no Caribe, por sua vez, conta com uma das menores taxas de homicídio da América Latina. Em 2012, por exemplo, Cuba teve uma taxa de 4,2 homicídios por 100 mil pessoas, segundo dados do Estudo Global sobre Homicídios, realizado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Na contramão, Carmen argumenta que o Brasil vive uma "guerra civil silenciosa".
"A diferença é muito grande entre um projeto de governo e outro, não somente em Pernambuco, mas para o Brasil, porque no centro do governo cubano o que está colocado é o ser humano, o cidadão cubano. É para ele que tudo é feito, é em função do povo que as coisas são feitas. Nós [Brasil] estamos com índices de 60 mil pessoas mortas por assassinato, a grande maioria pela polícia. Esse número é referente à Síria, ao Iraque, só que a gente não tem uma guerra aqui", analisa Carmen, que também é mestre em Criminologia e Direito Penal, formada em Cuba.
Neste ano, durante a Feira Internacional de Turismo de Madri (FITUR), a ilha recebeu o Prêmio Excelência de “País Mais Seguro” para os turistas visitarem, não apenas no Caribe, mas em todo o mundo.
Educação
Luis Eduardo Mergulhão é professor da rede pública do Rio de Janeiro e estuda a história política de Cuba e processos revolucionários na América Latina. Ele ressalta que a ilha não foi criada na cultura da violência, mas voltada para a construção de uma sociedade mais igualitária e fraterna, principalmente através da educação.
Mergulhão destaca que a primeira medida da revolução vitoriosa de 1959 foi uma campanha de alfabetização. "É uma educação baseada em valores completamente diferentes dos nossos. Em Cuba, não existe criança fora da escola e há toda uma integração sistêmica para que esse ser humano novo seja criado. O Brasil embora seja uma potência econômica e tenha riquezas naturais muito maiores, não consegue chegar nos índices sociais que Cuba possui: zerar seu analfabetismo ou diminuir sua taxa de mortalidade infantil".
Na América Latina e no Caribe, apenas Cuba atingiu os seis objetivos de Educação, no período 2000-2015, estabelecidos pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). O Brasil cumpriu apenas duas das seis metas mundiais.
A taxa de analfabetismo brasileiro caiu de 7,2% em 2016 para 7,0% em 2017, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar da queda, as mazelas sociais e econômicas são um impasse na meta de erradicar o analfabetismo até 2024, como prevê o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014. As quedas ano a ano não só ocorrem a conta-gotas como as desigualdades regionais ainda persistem.
Em Pernambuco, por exemplo, a taxa de analfabetismo é quase o dobro da média nacional, com 13,4% (1 milhão de pernambucanos não sabem ler e escrever). Carmen Diniz destaca os programas sociais das gestões do Partido dos Trabalhadores (PT), que, segundo ela, conseguiram reduzir, significativamente, os impactos dessa desigualdade.
"Nesse mesmo Pernambuco, quantas crianças deixaram de morrer pela mortalidade infantil graças aos programas de governo, ao Bolsa Família, que representa muito pouco no orçamento do país? Graças ao Bolsa Família, ao programa de vacinação, quantos entraram na faculdade?", argumenta.
"Cuba comprova que um país pobre em recursos naturais, mesmo bloqueado pela maior potência do planeta, pode ser um país justo socialmente. Cuba tem pobreza, mas não tem miséria, as pessoas não morrem de fome e elas têm direito à cultura e ao fundamental para se sobreviver", completa Mergulhão.
Saúde
Daniela Brosco, médica de família e comunidade, se formou em Cuba e já trabalhou em Pernambuco, Paraíba e São Paulo. Hoje, atua no bairro Jacarezinho, no Rio de Janeiro. A médica, que fez parte do Programa Mais Médicos por quase quatro anos, analisa que as esferas política e econômica de um país determinam os projetos na área de saúde.
"Cuba, sendo uma sociedade socialista, prioriza o paciente. Cuba tem o entendimento de que é muito mais importante valorizar a saúde do paciente, primeiro por uma questão humanitária de evitar que aquela pessoa adoeça e, do ponto de vista econômico, também é mais interessante prevenir uma doença do que tratá-la, levar o paciente para a atenção secundária, para hospital".
A Atenção Primária à Saúde (APS) – que pensa a promoção da saúde e prevenção de doenças – do Brasil é baseada e foi elaborada por meio de experiências de Cuba. Apesar das semelhanças teóricas, na prática a aplicação da especialidade funciona de maneiras distintas.
Em Cuba, um médico de família atende, no máximo, 1.500 pessoas, moradoras do mesmo bairro que o médico. No Brasil, esse número chega a 4.000 pessoas. Além disso, 100% da população cubana é coberta pela APS.
Relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) apresenta as experiências da Estratégia Saúde da Família nos municípios pernambucanos de Águas Belas, Ouricuri e Vitória de Santo Antão, com o protagonismo de médicas e médicos cubanos pelo Programa Mais Médicos (PMM). Pernambuco é o terceiro estado brasileiro — empatado com o Maranhão — que mais recebeu médicos pelo programa.
Segundo o estudo, em 2015, Pernambuco possuía 137 municípios onde estavam presentes médicas e médicos cooperados, distribuídos por todas as regiões do estado. "O PMM contribuiu com o provimento de profissionais em regiões desassistidas e com população em situação de vulnerabilidade, como é o caso dos municípios de pequeno e médio porte visitados, principalmente em áreas rurais, ribeirinhas e quilombolas. Possibilitou, dessa maneira, a inserção de médicos em municípios que não conseguiam atrair profissionais, seja por sua condição social e geográfica, seja pela incapacidade de promoverem políticas públicas exitosas de atração e fixação desses profissionais, problemas vivenciados anteriormente ao PMM".
Daniela, que atualmente é preceptora na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que a medicina no Brasil é mercantilista e, automaticamente, muito classista. Segundo ela, isso acaba fazendo com que o paciente seja visto como um cliente.
"A maioria dos médicos cubanos que vieram para o Brasil são negros, como a maior parte da população cubana, e o médico brasileiro não está acostumado a ver pessoas negras de jaleco atendendo como médicos. De certa maneira, o paciente também foi convidado a quebrar esses paradigmas porque ele também está acostumado a ver no médico brasileiro uma figura que representa outra classe social", explica.
Democracia política: "Vai para Cuba!"
Em Cuba, a classe dominante não é a burguesia, mas o povo que gere o Estado e os meios de produção, destaca Mergulhão. Ele afirma que Cuba vive uma democracia socialista e política, onde a representação política é o poder popular.
"Com um traço político bastante distintivo do nosso, além da produção ter base social e da economia ser planificada, o funcionamento político em Cuba é bem diferente do Brasil porque obedece os critérios socialistas. O objetivo do socialismo é fazer com que as pessoas se incorporem cada vez mais as decisões políticas e que elas não fiquem restritas a um grupo pequeno de pessoas".
Mergulhão ainda comenta sobre o ódio a Cuba. O professor atribui o fenômeno a um anticomunismo disseminado pela televisão, em que países que fogem da lógica societária e de mercado dos Estados Unidos se tornam inimigos.
"Então, o ódio fica por isso: primeiro, existe uma desinformação muito forte e os meios de comunicação só passam o pior de países como Cuba. São poucos os programas, inclusive, das grandes redes de comunicação que tentam fazer uma análise justa", finaliza.
Edição: Diego Sartorato